Família

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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Viver não dói

Viver não dói

Definitivo, como tudo o que é simples. 
Nossa dor não advém das coisas vividas, 
mas das coisas que foram sonhadas 
e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer, 
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana, que gerou
em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável, 
um tempo feliz. 

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos 
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projecções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos 
de ter conhecido ao lado do nosso amor 
e não conhecemos,
por todos os filhos que 
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados, 
pela eternidade. 

Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco, 
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema, 
para conversar com um amigo, 
para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe 
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias 
se ela estivesse interessada 
em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, 
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós, 
impedindo assim que mil aventuras 
nos aconteçam, 
todas aquelas com as quais sonhamos e 
nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?

A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!

A cada dia que vivo, 
mais me convenço de que o 
desperdício da vida 
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável.

O sofrimento é opcional.

Carlos Drummond de Andrade

Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/news03/article.php?storyid=193#ixzz2Hc3G7xpa
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Nariz


Memórias Póstumas de Brás Cubas

CAPÍTULO XLIX / A PONTA DO NARIZ

NARIZ, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, e tal explicação confesso que até certotempo me pareceu definitiva; mas veio um dia. em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde e sentimento das cousas externas, embeleza-se no invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dous séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.
Ouço daqui uma objeção do leitor: -- Como pode ser assim, diz ele se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dous anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
















O nariz ensina


Simetrias e assimetrias do órgão que simboliza, talvez mais do que todos os outros, a nossa identidade


Gabriel Perissé



No livro Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche refere-se ao nariz como "o mais delicado dos instrumentos que se encontram à nossa disposição: ele consegue constatar diferenças mínimas de movimento, que o próprio espectroscópio não constata". O nariz como instrumento de observação para o pensador. Como fonte de informações e, portanto, oportunidade para o aprendizado.

O nariz é, como o olho, símbolo de clarividência, apto a orientar nossos desejos e decisões, "antena" que nos ajuda a caminhar. Lutamos a vida inteira para ser donos do nosso próprio nariz e saber onde o temos. Mas quando não vemos o que está bem debaixo dele, é hora de rever nossos parâmetros e pressupostos.

Podemos bater com o nariz na porta, é verdade, ou metê-lo onde não foi chamado, ou não enxergar um palmo além do dito cujo. Por outro lado, graças aos seus serviços, descobrimos quem não é flor que se cheire, ou o torcemos, ao constatar, como escreveu o poeta Lêdo Ivo, que o mundo nauseabundo exala cheiro de sangue e vômito!

O nariz é parte importante de personagens da literatura ou mesmo personagem importante ele próprio em muitas histórias!
Não se poderia imaginar Pinóquio sem o seu nariz e, por tabela, deixar de perceber no rosto de grandes mentirosos, sobretudo no âmbito político, alterações faciais indisfarçáveis.

Já na célebre peça de teatro de Edmond Rostand, a hipérbole nasal de Cyrano de Bergerac é motivo de chacota, mas se torna, por contraste, em sinal de beleza de caráter.

Luis Fernando Verissimo escreveu uma crônica, "O nariz", em que o protagonista decide usar para sempre um nariz postiço que o torna parecido com o Groucho Marx. Família, amigos e clientes acabam por se afastar dele. Um mero nariz de borracha faz dele outro homem? Este é o poder do nariz? "Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?" - disse ao psiquiatra que, perplexo, respondeu que talvez ele tivesse razão.
A pedagogia do nariz
O que um nariz tem a ensinar? Machado de Assis dedica-se a analisar a prática de fixar a ponta do nariz no capítulo 49 de Memórias póstumas de Brás Cubas. Olhar atentamente para a ponta do nariz é exercício de sublimação, elevação do espírito, caminho para a visão sobrenatural.

Ao lado do amor, diz Machado, força que garante à espécie humana multiplicar-se, o nariz permite à humanidade equilibrar-se, superando o ódio que nasce inevitavelmente da convivência diária. Ao olhar para a ponta do nariz e concentrar-se, portanto, em sua própria individualidade, o homem enfurecido, corroído pela inveja ou pela sede de vingança, desliga-se do exterior, esquece os inimigos e rivais, volta-se para o invisível, o intangível, o inefável. Fincando os olhos nesse ponto, impede-se o crime. O universo todo subordina-se àquela ponta de nariz e o gênero humano é preservado.

O recurso à contemplação "narigal" é conselho satírico de Machado. Quando vemos para além do nosso nariz, ou do nosso umbigo, nos comparamos aos outros, queremos imitá-los ou superá-los. O remédio está aqui: olhando para a ponta do nariz, o indivíduo fica vesgo e, ficando vesga também a sua mente, perde de vista a realidade externa. O mundo se torna difuso. Os conflitos, que fazem parte da dinâmica social, se diluem.

Mesmo sendo recomendação satírica tipicamente machadiana, algo de verdadeiro e útil há neste nariz supervalorizado. Descobrir o próprio nariz é atentar para os nossos desejos e paixões egoístas, localizá-los como algo inegável. Ninguém pode viver "desnarigado", sob pena de desligar-se da sua própria maneira de ser. É preciso aprender a olhar para si mesmo, abstrair do "não eu". E sem remorsos e culpas. Se cada um olhasse para a ponta do seu respectivo nariz, todos compreenderíamos melhor (sem moralismos) as consequências da introspecção.
Um nariz é um nariz...
ou mais do que isso?

O conto "O nariz", de Nikolai Gogol, relata as aventuras de Platon Kovaliov, que numa certa manhã descobre ter perdido o nariz. O órgão olfativo desgrudou-se do rosto e saiu da casa sem avisar, e foi visto mais tarde com as roupas de um conselheiro diplomático passeando pela cidade como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Afinal, o nariz ambulante será capturado e devolvido ao dono. Voltará a ocupar o seu devido lugar. Deveríamos estranhar tudo isso? O narrador explica, no último parágrafo da história: "por mais que se diga, aventuras como esta acontecem neste mundo, sendo raras, mas acontecem".

Existe algum sentido secreto em perder o nariz de uma hora para outra, e recuperá-lo sem mais nem menos? Os críticos literários se dividem. Uns afirmam que o nariz não passa de um nariz. Outros, apoiados na fala do próprio personagem, avaliam de outro modo:

- Que situação pode ser pior do que a minha?
Que pretende que eu venha a ser sem nariz?
Onde irei parar, entregue a esta fatalidade?
Outro conto, inspirado neste, intitulado "Nariz", de autoria do escritor japonês Ryunosuke Akutagawa, poderá nos ajudar a entender o nariz e, talvez, um pouco da condição humana. Nessa história, um velho monge budista ostenta um nariz de 15 centímetros de comprimento. Humilhado ao longo da vida pela deformidade, deseja que seu nariz encolha. Enfim, com a ajuda de um zeloso discípulo, consegue que o apêndice monstruoso passe a ter dimensões mais aceitáveis.

Para sua surpresa, porém, o nariz encurtado começou a provocar o riso e o deboche de todos. Sua situação anterior despertava compaixão e respeito. A superação da infelicidade atraiu-lhe novos e maiores motivos para sofrer. E então, inexplicavelmente, seu nariz voltou a ser o que era antes. Aquele nariz enorme, que lhe chegava até abaixo do queixo, recuperou-lhe a paz.

Cada um cuide do seu nariz. Mais do que ornamento ou funcionalidade, o nariz é identidade. Transformá-lo, negá-lo ou perdê-lo é transformar, negar ou perder algo essencial. Sem o nariz com que nascemos e crescemos, perdemos o rumo. Ficamos desfigurados. Nosso perfil falseado falseará nossa verdade.

Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP) ( www.perisse.com.br ).




sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Fernando Pessoa - Poema - Isto


Poema Isto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.


Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.


Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Assunto: o fingimento e a criação artística; a racionalização dos sentimentos (sentir com a imaginação, não usando o coração).


Divisão do poema: duas primeiras quintilhas - negação de que finge ou mente; justificação de que o que faz é a racionalização dos sentimentos na busca de algo mais belo mas inacessível;

última quintilha - argumentação de que ao escrever se distancia da realidade, intelectualizando os sentimentos e elaborando uma nova realidade - a arte.


sentido da 1ª estrofe: reconhecimento do que dizem e negação de que finge ou mente "sinto com a imaginação/ Não uso o coração" - expressão da intelectualização do sentimento.


comparação da 2ª estrofe: "Tudo o que sonho ou passoO que me falha ou finda" (primeiro termo da comparação) "(...) um terraço/Sobre outra coisa ainda" (segundo termo), ou seja, o mundo real ("terraço") é reflexo de ("Sobre outra coisa ainda") um mundo ideal ("essa coisa é que é linda" - conceito oculto ou platónico, mundo que fascina o sujeito poético).


situação a que chega o sujeito poético - "livre de meu enleio" (desligado do tema) . há um acto de fingimento de pura elaboração estética e o leitor que sinta o que ele comunica apesar de não sentir ("Sentir? Sinta quem lê!")



O poema "Isto" apresenta-se como uma espécie de esclarecimento em relação à questão do fingimento poético enunciada em "Autopsicografia" - não há mentira no acto de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir" da racionalização. Aqui, o sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos actos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora. A comparação presente na 2ª estrofe (vv.6-9) evidencia o facto de a realidade que envolve o sujeito poético ser apenas a "ponte" para "outra coisa": a obra poética, expressão máxima do Belo.

Na 3ª estrofe, introduzida pela expressão "Por isso" de valor conclusivo/ explicativo, o sujeito poético recusa a poesia como expressão imediata das sensações. O sentir, no sentido convencional do termo, é remetido para o leitor.


"Fingir" não é o mesmo que "mentir" é a tese defendida. Não há mentira no acto de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do "sentir", da racionalização dos sentimentos vividos pelo sujeito poético. O sujeito poético vai mais longe já que, negando o "uso do coração", aponta para a simultaneidade dos actos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora.